A Igreja

Aproveito para postar esta história que escrevi anos atrás. Eu alterno meu lado técnico com meu lado de escritor de histórias. Esse sou eu.

Tinha poucos meses que tinha me mudado para meu novo apartamento no Playground District e uma das coisas que mais me agradavam era a vista ampla com a qual este era agraciado. Sei que o nome do bairro é engraçado, mas como se tratava de um bairro relativamente novo, parece que na prefeitura tiveram dificuldades para achar um outro nome e este lhes pareceu original. Mal eles sabiam que talvez sem querer tinham acertado no nome por motivos que veremos mais tarde. O apartamento era de esquina e a vista era linda a partir de qualquer uma das janelas do imóvel. Nada que lembrasse o meu antigo apartamento com vista apenas para as paredes úmidas do prédio vizinho e onde os raios solares tinham dificuldade de chegar. A umidade que tantas vezes me fez adoecer, vítima de crises de sinusite e algumas pneumonias que abalaram minha saúde, não estava presente na minha nova morada, o que era um alívio. Mas não era só isso que tinha ficado para trás, alguns fatos sem explicação, lembranças de fatos que nunca ocorreram nesta vida ligados a alguns vizinhos, presenças inesperadas e misteriosas que não me afetavam muito mas amedrontavam minha mulher também tinham ficado para trás.

Contrariamente ao resto da cidade, aqui ainda podia se ter um contato com a natureza, incluindo belas e quase selvagens praias junto com modernas construções em uma cidade com poucos espaços para crescer, o que ainda acontecia nesta região. Podia-se dizer que até certo ponto, por ser uma região mais nova da cidade, os grandes problemas desta como a violência opressora de January River ainda não a haviam alcançado. Um oásis no meio do caos. Porém, o caos pode se fazer presente disfarçado de beleza e se manifestar de formas inesperadas, como eu viria a descobrir.

Da varanda da sala podia contemplar uma extensa área verde assim como os prédios modernos vizinhos e chalés que constituíam a grande maioria das construções existentes. Também podia contemplar mais longe o movimento dos carros na longa e larga avenida que corta Playground District e Cross-Bar, o bairro vizinho, de um extremo a outro, assim como a moderna estação de ônibus em frente, onde tinha um constante vai e vem de pessoas, algumas moradoras do bairro, outras muitas trabalhadoras que vinham de bairros distantes para trabalhar principalmente no comércio do local, em condomínios e também em escritórios e consultórios. Olhando mais distante, mas de forma imponente, aparecia uma bela cadeia de montanhas que cercava Playground District e Cross-Bar e as espremia junto ao mar e que faziam uma separação entre esta região e o restante da cidade, praticamente a isolando.

Particularmente me agradava que tanto das amplas janelas do banheiro e da área interna surgia outra paisagem visível somente a partir da lateral do prédio mas que me permitia ter uma vista panorâmica de boa parte do bairro, formado de chalés, pois os prédios eram minoria, assim como de Cross-Bar onde aí sim os prédios eram a regra, até o outro extremo da cadeia de montanhas onde surgiam imponentes as elevações que desenhavam uma figura que parecia um gigante deitado. Estas montanhas eram chamadas de “o gigante adormecido”. E como se fosse pouco, eu ainda tinha uma vista parcial do mar, delícia das delícias. O mar tem uma existência inseparável da vida das pessoas da região, como eu fui perceber ao longo do tempo. Vidas entrelaçadas, em comunhão constante.

Adorava contemplar estas paisagens. E foi num dia desses, de contemplação que a vi pela primeira vez. Ela tinha passado desapercebida para mim nas primeiras semanas, mas desta vez ela surgiu para mim como se tivesse surgido do nada. Uma igreja que parecia estar sobre uma elevação, de frente para o mar. Me chamou muito a atenção o fato de não a ter percebido antes e chamei a minha mulher para confirmar para mim se estava vendo a igreja. Sim, ela também a estava vendo e se mostrou igualmente surpresa. A partir daí não passava um dia sem que eu olhasse na sua direção. Algo na visão dessa igreja me perturbava.

Numa de minhas contemplações surgiu a decepção. Olhando fixamente para a igreja comecei a perceber que na realidade estava sendo vítima de um engano, de uma espécie de ilusão ótica. A tal igreja era um conjunto poderoso de antenas que se elevavam sobre um prédio majestosamente, e que de forma caprichosa lembrava de longe o formato de uma igreja, mas era só isso, ou eu pensava que era apenas isso.

Um dia desses chegou uma frente fria e o tempo fechou na região. A paisagem que eu gostava tanto se tornou cinzenta. Me lembrei da “igreja” de forma divertida, pensando em como eu podia ter me enganado tanto. Decidi olhar em sua direção. Levei um susto e estremeci, não pude deixar de sentir temor com o que estava vendo. Uma igreja majestosa surgia na minha visão, uma nítida e perfeita igreja! Mas como era possível? Olhei repetidas vezes e a igreja continuava firme no meu campo de visão. Chamei Pitty, a minha mulher e ela confirmou entre espantada e divertida que também estava vendo uma igreja. Não eram antenas, era a igreja.

No dia seguinte fui olhar novamente para confirmar o que tinha visto, mas a igreja continuava lá. Decidi aceitar o fato de que realmente tinha uma igreja no meio da paisagem e procurei não questionar mais.

A manhã seguinte era um sábado de sol e me preparava para ir com Pitty, minha mulher, para a praia, que podia ser alcançada a 20 minutos a pé de onde morávamos. Nós gostávamos muito de caminhar para a praia e parávamos frequentemente no caminho,

distraída que ficava Pitty com o comércio e feiras do bairro. Em muitos aspectos esta área próxima lembrava uma cidade do interior. Antes de sair, meio de forma automática fui dar uma olhadinha na igreja: Agora aparecia novamente de forma nítida o conjunto de antenas! A igreja tinha desaparecido mais uma vez! Com o passar das semanas fui me acostumando com a aparição e desaparição da igreja, e eu mesmo comecei a achar que tudo não passava de uma peça que o meu cérebro estava me pregando. Mesmo assim procurei não dar muita importância ao assunto. Iria adiantar de alguma coisa? Procuraria me concentrar em aproveitar as coisas boas que estavam à minha disposição, a praia principalmente, da qual eu e minha esposa gostávamos muito e que era muito real.

Passaram alguns meses e estávamos muito felizes por ter nos mudado para este bairro, só encontrávamos bons motivos para ficar mais satisfeitos com nossa escolha embora de vez em quando a lembrança da igreja me perseguia. Aproveitamos muito o verão, não parecia que estávamos em January River, parecia uma outra cidade. Quando assistíamos as notícias da cidade no telejornal parecia que estavam falando de uma cidade distante. Nossa região definitivamente era como se fosse uma região que se desprendeu da cidade e tivesse sido transportada para um universo paralelo. Era essa a sensação que nós tínhamos e eu e minha esposa conversamos sobre isto mais de uma vez. Ela também tinha essa sensação, a de estar dentro de um sonho. Tinhamos receio de acordar, não queríamos acordar, tamanha era nossa felicidade. As pessoas eram diferentes aqui, mais simpáticas e menos agressivas. A beleza e ordem que reinavam pareciam artificiais. Como era possível que um mero bairro fosse assim tão diferente do resto da cidade, mergulhada no caos? Por vezes comentávamos que parecia que estávamos em outro país. Essa sensação se tornava mais forte quando caminhávamos pelas belas praias, um paraíso. Falei para Pitty uma vez que se a gente morresse algum dia o paraíso devia ser parecido com Playground District. E era justamente esta perfeição que me amedrontava, não podia ser real, pensava.

Porém um fato marcante aconteceu que veio mudar as coisas. A meteorologia tinha previsto a chegada de uma frente fria, nada que nós não tivéssemos acostumados nos muitos anos morando em January River. O momento que a frente fria chegou foi marcado por uma ventania muito forte, até aí nada de extraordinário, porém o vento começou a aumentar de intensidade e uivar furiosamente enquanto eu via da minha varanda árvores fortes balançando primeiro e depois sendo arrancadas. Objetos começaram a voar e tive que correr rapidamente para dentro do apartamento e fechar as janelas e a porta que dava acesso à varanda. Começou a chover copiosamente, com intensidade tal que não tinha visto antes no tempo que estava morando no novo bairro. Em poucos minutos as praças e áreas verdes vizinhas viraram lagos. Passei na cozinha para fechar a porta e olhei em direção da área, em direção da igreja. Foi aí que começou… No início não tinha certeza do que estava ouvindo, mas depois não havia mais dúvidas, estava escutando os sinos da igreja tocando! Os sinos de uma igreja que nem tinha certeza de que existia realmente! Os sinos não paravam de tocar, como se um monge de séculos passados estivesse tocando os sinos à moda antiga, manualmente, com muito vigor ou desespero. Como se estivesse dando o alarme de algo extraordinário e grave acontecendo.

Fiquei paralisado perante esse cenário, mas da paralisia passei para o terror quando comecei a escutar um forte rugido. Eu sabia o que era esse rugido, era o mar. Não entendi no princípio o motivo do rugido do mar mas compreendi que um fato grave estava prestes a ocorrer. O rugido foi diminuindo gradualmente em intensidade, como se afastando. Por alguns breves momentos o silêncio voltou a reinar. Após esse breve período o rugido voltou a surgir, cada vez com intensidade maior e percebi apavorado o que estava acontecendo, o mar estava saindo, saindo com fúria e avançando sobre Playground District! Gritos de desespero de homens, mulheres e crianças se somaram ao rugido aterrorizante do mar. Gritos que aos poucos eram silenciados pela morte. Sabia que o meu fim também era iminente e nesse derradeiro momento me ajoelhei e comecei a rezar, desesperadamente. Nesse momento consegui escutar um coral de vozes e um murmúrio de pessoas. Os cânticos com devoção parecia que se elevavam até o céu. A única coisa que consegui imaginar nesse instante foi numa procissão.

Passados alguns segundos, ainda com os joelhos no chão, o silêncio. O silêncio voltou a reinar. Eu estava aí ainda, perplexo. O que aconteceu? Fiquei em pé e a igreja continuava lá assim como o restante de Playground District, como se nada tivesse acontecido. E de fato parece que nada aconteceu, apenas na minha imaginação. Será que foi só isso?

Voltei para a sala e a minha mulher já tinha ido dormir. Aparentemente ela não tinha passado pela experiência pela qual eu passei.

No dia seguinte perguntei para alguns vizinhos se eles conheciam alguma igreja próxima, pois eu pessoalmente não tinha visitado nenhuma ainda, por desconhecer a localização destas. Eles me apontaram alguns locais e um deles ficava na direção da igreja misteriosa de minha visão, embora mais distante. Fiquei intrigado e convidei Pitty para me acompanhar a uma Capela muito importante que me tinha sido indicada. Quando cheguei no local, se tratava de uma Capela simples e

bela ao mesmo tempo. Fiquei sabendo que esta Capela era uma reprodução fiel da Capela de Nossa Senhora de Fátima em Portugal, a mesma que apareceu para os 3 meninos pastores. A Capela era a única réplica no mundo autorizada pela Igreja de Portugal. Era estranho que um local tão importante da fé católica tenha sido construído ali, no início de Playground District, um bairro que embora belo era distante e isolado do resto da cidade. Minha surpresa foi grande quando fiquei sabendo que segundo o padre que estava por trás desse projeto, o local foi indicado para ele em sonhos pela própria Nossa Senhora de Fátima!

O que eu vi devia ter algum significado, assim como a presença do Santuário de Nossa Senhora de Fátima em Playground District. A procissão que pensei ter ouvido também devia ter um significado. Será que a visão que tive foi a visão de um fato possível, mas que não necessariamente iria ocorrer? Sei que após a procissão de minha visão e de ter me ajoelhado para orar tudo cessou. Seria essa a mensagem dessa visão? A de orar, orar muito por Playground District?

Embora não fosse muito religioso na época deste relato, nos momentos de necessidade a maioria de nós se lembra da existência de um Deus, essa visão mudou minha vida, me aproximando mais de Deus. Ah, contei para vocês que agora participo das procissões que viraram tradição em Playground District? Pois é, existe um Ser maior, que embora pareça por vezes que brinca conosco, parece ter um propósito. Pelo menos eu passei a acreditar assim dali em diante. Playground District parece que tinha um destino trágico mas que não estava se concretizando, pelo menos enquanto tivessem pessoas orando por isso. Um belo lugar que pode oscilar entre o paraíso e a devastação. Mas forças espirituais não permitiam o fim trágico acontecer. E espero que seja assim sempre. De minha parte enquanto tiver vida em mim as minhas orações não cessarão.

Bom, este relato acabou mas Playground District teria mais surpresas para mim. Mas isso fica para outras histórias.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *